quarta-feira, 21 de abril de 2010

Não dou beijos



Não existe coisa mais estranha do que o beijo. Mais ainda aquele conhecido pelo nome de um peixe. A união das extremidades superiores do aparelho digestivo de duas pessoas não parece cumprir grande função além da transmissão de uma série de doenças, incluindo a mononucleose, a gripe comum, a meningite e o herpes. Durante um beijo são trocados uns bons mililitros de saliva, bem como cerca de 250 mil bactérias. Em suma, é uma grande porcaria.

Mas nem por isso as pessoas deixam de se beijar. Beijam-se e voltam a beijar-se as vezes que forem precisas. Ao longo da vida, cada pessoa dará muitas centenas, se não milhares de beijos, trocando no processo vários litros de saliva. Porquê então tanta beijoquice? Que maquiavélicas artes nos levam a juntar bocas e línguas com outras pessoas, mesmo contra todas as regras da boa higiene?

Acreditam alguns especialistas que o beijo é uma reminiscência dos comportamentos de limpeza mútua do pêlo com a língua que ainda observamos em animais como os gatos, os macacos ou as ratazanas. Outros defendem que poderá derivar do processo de pré-mastigação da comida realizada pelas mães antes de a dar aos seus filhos boca a boca, em algumas espécies animais (blegh!). Outros ainda pensam que poderá servir para “saborear” o sistema imunitário do parceiro e assim fazer uma triagem de quem interessa ou não conhecer mais intimamente. Talvez seja esta a verdade escondida por detrás da ideia, berrada pela Cher do fundo da sua goela, que é no beijo que se consegue perceber se “ele” está mesmo apaixonado.

Certo é que o beijo ocupa um lugar curioso na nossa cultura e nas nossas cabeças. Existe a ideia clássica, eternizada pela prostituta da Julia Roberts, de que as raparigas da vida podem fazer coisas com os seus clientes que fariam ruborizar Santa Teresa de Ávila, mas beijar, nunca! Exactamente a mesma filosofia defendida pelo prostituto do filme de Téchiné ao qual este artigo rouba o nome.

Assim, o beijo é considerado um acto altamente íntimo e pessoal, mais ainda do que o coito ou o sexo oral. Porém, enquanto que estes são comportamentos que, se realizados no jardim ou na paragem de autocarro, dariam origem a algumas chatices e provavelmente envolveriam a polícia, o mesmo já não acontece com uma beijoca, pelo menos nos dias que correm.

Será a proximidade com a maioria dos órgãos dos sentidos que torna o beijo mais íntimo do que o coito? Sentir-nos-emos mais vulneráveis ao esfregarmos as nossas papilas gustativas nas de outra pessoa? O nosso gosto e concepções sobre o beijo desafiam a lógica e de alguma forma traduzem algumas das contradições com que encaramos a intimidade e o sexo. E entretanto, mesmo que não o possamos explicar, continuaremos a beijar-nos como se o mundo dependesse disso.


Artigo publicado na revista Pública de 5/04/2009

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A fabulosa vida sexual das trufas





Quem iria imaginar que as boas das trufas, do fundo dos seus esconderijos subterrâneos, teriam uma vida sexual como outra pessoa qualquer? É que de tão discretas que são, nunca ninguém suspeitou que as ditas túberas sequer se reproduzissem da forma mais divertida que existe. Nem tão pouco alguma vez se ouviu falar do problema da gravidez adolescente das trufas ou do aumento das taxas de infecção pelo VIT (vírus da imunodeficiência trufal). Ainda que, bem que vistas as coisas, porque não terão as pobres coitadas direito ao seu prazer? Não serão as trufas também gente, no que toca ao sexo?

Mas vamos lá por partes. Uma equipa de investigadores Franceses da Universidade de Nancy liderados pelo Dr. Francis Martin, decidiu estudar o genoma das trufas. Os resultados foram agora publicados e revelam alguns dos segredos da vida íntima dos bichos. Que por sinal não são bichos, mas tubérculos, os frutos de uma espécie de fungo que cresce junto às raízes de árvores, em particular de carvalhos e castanheiros. E a maior descoberta de todas foi, de facto, que afinal esses tubérculos são seres sexuais, ou seja, têm dois “géneros” e é através do cruzamento entre eles que surge a diversidade trufal.

E porque se lembraria alguém de se dedicar a tão fastidiosa tarefa, quanto a de investigar o código genético desses peculiares seres, perguntam muito bem? Não foi por acaso. As trufas são consideradas iguarias de primeira, um produto gastronomicamente muito apreciado pelos gourmets. Por serem difíceis de encontrar, chegam a custar 6.000 dólares por quilo! Conhecer os detalhes da respectiva programação genética é uma chave importante para melhor produzir e assim ganhar uns trocos com as ditas das trufas.

Por terem o peculiar hábito de se esconder debaixo do chão, torna-se um tanto difícil encontrar parceiros sexuais, até porque ainda ninguém se lembrou de criar um site de encontros para as trufas na Internet, e bares de solteiros dedicados à espécie não existem. Por isso algumas trufas desenvolveram a capacidade de produzir a hormona libertada pelos porcos e javalis na altura do cio, emanando um aroma de tal forma potente que põe os pobres animais doidos de desejo. Neste caso de consumir as trufas. Assim as túberas apanham boleia dos ditos animais e espalham os seus esporões por outras paragens, depois de consumidas e processadas pelo tubo digestivo dos animais, por assim dizer.

Muito podem os humanos aprender com as trufas! Apesar de pouco valorizadas e muito recalcadas, as feromonas humanas sempre tiveram um importante papel na atracção sexual entre as pessoas. Transmissores químicos que são, as feromonas transmitem uma mensagem odorífera de desejo e depravação de alguma forma reminiscente da emitida pelas trufas. Excepto que estas precisam do seu cheiro para perpetuar a espécie e nós, humanos, já não. Assim se inventaram perfumes, águas-de-colónia e desodorizantes para disfarçar os odores corporais que se tornaram objecto de repulsa e repressão, quando na verdade a sua função é bem mais interessante.

Por sua vez as trufas não só não têm vergonha do seu cheiro como o usam descaradamente em prol da sua vida sexual que, caso contrário, seria tão monótona quanto o estudo do seu próprio código genético. Misturando-se e multiplicando-se podem assim continuar a deleitar quem tenha a possibilidade e se dê ao luxo de consumir tão requintado ingrediente.

Quanto a nós humanos, há quem diga que, no fundo, no fundo, todos somos uma trufa rechonchuda à espera do seu porquinho. Resta saber se algum dia assumiremos a atitude das trufas em relação ao seu cheiro e se, pelo menos de vez em quando, o utilizaremos como o afrodisíaco que ele pode ser.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Estupidez emocional

A inteligência emocional, a par da auto-estima, da assertividade ou da resiliência, é daqueles conceitos provenientes da Psicologia que acabou por ganhar popularidade e por ser integrado na linguagem comum. Para quem não sabe o que é, a inteligência emocional relaciona-se com a capacidade que idealmente todos deveríamos ter de lidar com as nossas emoções de um modo saudável e produtivo.

Quem tem a sua inteligência emocional bem desenvolvida deverá ser capaz de reconhecer as suas próprias emoções, de se aperceber e de respeitar as das outras pessoas, além de as utilizar como guias para o seu comportamento. Porém, o que acontece com muita frequência é que as pessoas têm dificuldade em gerir as suas emoções. Acabam por fazer coisas que lhes são prejudiciais, numa atitude que muito bem poderia ser chamada de estupidez emocional.

Ao nível profissional esta incapacidade de lidar com as emoções pode levar a escolhas pouco acertadas e a criar situações de conflito com colegas e chefias. Ao nível familiar pode ser causa de discussões, de faltas de diálogo e de ressentimentos que duram toda uma vida.

Como se tudo isso não bastasse, no que respeita à vida amorosa, estes condicionalismos emocionais levam muitas pessoas a envolverem-se com outras que, provavelmente, não são as mais indicadas para elas ou que, pelo menos, não o são naquele momento. E não são indicadas porque mantêm outras relações e não estão dispostas a abdicar das mesmas, mesmo que digam que o irão fazer no futuro. Porque humilham e agridem verbal e fisicamente. Porque têm interesses ou formas de estar na vida de tal forma diferentes que se tornam irreconciliáveis numa relação a dois. Porque, enfim, não estão dispostas a assumir um compromisso e preferem manter uma “amizade colorida” quando não é esse o desejo da outra pessoa envolvida.

Nessas, como em muitas outras situações, existe quem se mantenha infeliz ou pelo menos não completamente satisfeita na relação, ainda que sempre na expectativa de que as coisas melhorem de forma a conseguirem alcançar a felicidade. Na maioria dos casos, isso nunca chega a acontecer. Ainda que as relações não estejam de acordo com os desejos de uma das partes, acaba-se por ir vivendo com a situação tal como ela é, muitas vezes por comodismo, mas também por medo de ficar só.

Tudo isto não significa que as pessoas escolham conscientemente ter relações pouco gratificantes. Quantos de nós já não se apaixonaram sem ser correspondidos sabendo, à partida, que qualquer possibilidade de uma relação se encontrava fora de questão? Felizmente não somos máquinas e, por esse motivo, não controlamos as nossas emoções que por vezes nos pregam partidas. Faz parte da experiência de estar vivo não saber que rasteira os nossos desejos e vontades nos irão passar e para que estranhas paragens nos irão levar as nossas emoções.

A grande questão é: se nos fosse dado a escolher, será que as coisas seriam diferentes? Teriamos o descernimento de optar pelas pessoas e pelas situações que nos poderiam fazer felizes? Enveredariamos pelos caminhos mais apropriados para o nosso coração? Estas são questões que permanecem em aberto. Porém, tenho a ideia de que as respostas não são tão simples quanto poderão parecer à partida. Ou seja, não sei se algumas pessoas, quando confrontadas com tal possibilidade de escolha, optariam pela melhor alternativa. Até porque, em alguns casos, o sofrimento também pode ser uma forma de estar na vida que serve de motor, de alimento e de alento. Será que se escolhe sofrer? Já dizia o poeta que o amor tem razões que a razão desconhece.

Por vezes pode ser importante fazer um exercício de introspecção para tentar perceber quais os motivos pelos quais mantemos relações que não são satisfatórias. Será por medo de não conseguir melhor? Por medo de magoar a outra pessoa? Qualquer justificação pode servir como desculpa para manter uma relação que já não tem razão de ser. É nesses casos que a inteligência emocional deverá ser utilizada. Para que a felicidade pessoal possa voltar a ser um objectivo realista na vida de cada um.


Texto originalmente publicado na revista Activa