domingo, 28 de fevereiro de 2010

Teoria da cloaca



As aves, bem como os répteis, certos peixes e outros animais que por aí andam, têm um interessante órgão chamado cloaca. Com a cloaca pardais, lagartixas e raias, entre outros, defecam, urinam e põem ovos. E como seria de esperar de tão badalhocos animais, a cloaca serve ainda para ter sexo. Num acto de rara beleza, esses bichos dão o chamado beijo-cloacal, em que macho e fêmea juntam as suas extremidades posteriores para assim gozarem de um momento de intimidade e, já agora, para se reproduzirem também.


Pode então afirmar-se que a cloaca é dos órgãos mais multi-uso que encontramos na natureza. Concentra num só local as principais funções excretoras e sexuais de que um corpo é capaz. De resto, não é por acaso que a palavra cloaca, que deriva do Latim, signifique “esgoto”. Um nome, sem dúvida, muito apropriado.


Os humanos não têm cloaca. Por motivos alheios à nossa compreensão, a uma determinada altura da evolução humana, achou-se por bem diversificar, arranjando diversas vias para cumprir com as funções que aqueles pouco criativos animais concentram num só e concorrido vazadouro.


No entanto, muitas crianças, numa determinada fase do seu cândido desenvolvimento, acreditam que os bebés nascem através do ânus. Afinal, é por essa via que as pobres inocentes sabem sair objectos sólidos do corpo humano. É lógico portanto que pensem que outras coisas grandes e volumosas possam sair por ai também. Chama-se a essa crença infantil a “teoria da cloaca”.


Essa pitoresca, ainda que escatológica ideia, junta-se ao grupo das diversas teorias que as crianças pequenitas, à falta de melhor explicação, desenvolvem a propósito dos factos da vida sexual. Outros exemplos coloridos de tais ideações são, por exemplo, que os homens não têm qualquer papel na concepção de um bebé. Ou que quando têm relações sexuais, os pais estão, na verdade, a dar um valente enxerto de porrada um no outro. Por que outro motivo afinal gemeriam, gritariam e ofegariam tanto quando fechados no quarto?


Eventualmente as crianças irão descobrir que as suas teorias eram um perfeito disparate. E, à medida que crescem e se tornam adolescentes e depois adultos, irão também descobrir que os humanos podem não ter uma cloaca, mas certamente que tiram o máximo proveito possível dos orifícios que têm ao seu dispor. Mais, poderão até descobrir que, além de orifícios, diversas outras partes do corpo podem ser utilizadas para passar um bom momento. Que coxas, axilas e mamas são por vezes exploradas, usadas e até abusadas, em função da satisfação libidinal de alguns. Assim percebem que a vida sexual dos humanos é muito mais interessante do que um réptil alguma vez poderá sonhar. E finalmente ficarão satisfeitas por não ter uma cloaca.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Furor uterino



Na Grécia Antiga, bem antes das peripécias das senhoras desesperadas de Wysteria Lane, já várias mulheres eram acometidas daquilo a que hoje alguns chamariam de ataque de nervos. Estrebuchavam, tinham falta de ar e eventualmente desmaiavam sem mais nem ontem. Hipócrates, pai espiritual de médicos e psicólogos da actualidade, foi dos primeiros a tentar explicar tais espalhafatosos fenómenos.

Para ele, a causa do problema dessas senhoras seria o respectivo útero. Qual animal selvagem, esse órgão despregar-se-ia do seu local habitual, começando a subir corpo acima, provocando falta de ar e as palpitações típicas de tais manifestações. Por fim, causava o desfalecimento das coitadas, esgotadas com tanta agitação interna. O nome que ele deu a tal perturbação: Histeria.

Hoje em dia sabemos que nada de especificamente orgânico causa a histeria. Muito menos úteros enraivecidos a passearem pelo corpo das senhoras suas vítimas. Até porque homens, conhecidos por não terem úteros, também podem por vezes encontrar-se à beira de ataques de nervos desse tipo.

Mais sabemos que a causa de tais perturbações, hoje classificadas em respeitáveis manuais de psiquiatria como Perturbações de Conversão, é puramente psíquica e, de acordo com o senhor Freud e companhia, têm origem sexual infantil. Produtos de uma energia sexual mal contida, os sintomas físicos dessa perturbação traduzirão um sofrimento emocional e de alguma forma simbolizam os problemas que estiveram na origem do problema.

Mas sem querer entrar em detalhes técnicos aborrecidos, importa referir que o fanico histérico tem com frequência um componente de ganho secundário. Significa isso que tais ataques muitas vezes surgem como resposta a situações desconfortáveis ou embaraçosas para a criatura em causa.

Chegou cedo a casa e deu de caras com o seu marido na cama com a sua melhor amiga? Caia para o lado e quando acordar faça de conta que nada aconteceu. O seu chefe está num daqueles dias em que não o larga com coisas e mais coisinhas para fazer? Tenha um ataque de falta de ar e desfaleça. O seu marido insiste em ir ao futebol no dia em que os seus pais vêm para almoçar? Rebole no chão revirando vigorosamente os olhos e espume pela boca, que a coisa se resolverá com facilidade.

Sendo uma das instituições da cultura latina, pode-se afirmar que o chilique vistoso é assim também muito conveniente como solução milagrosa para todo e qualquer problema.

Apesar de separados por milénios de ciência, quer Hipócrates quer Freud atribuíram essa fascinante perturbação a uma mesma causa: a falta de utilização do útero. Por outras palavras, as senhoras histéricas encontrar-se-iam à beira de um ataque de nervos devido à falta de sexo ou, mais especificamente, por ainda não terem sido mães.

Sabemos bem que falta de sexo pode levar alguns a uma espécie de furor uterino, mesmo naqueles que nasceram sem tão útil órgão. Mas na verdade ainda hoje não compreendemos o fenómeno da conversão na sua totalidade, apesar de ser cada vez mais raro no mundo sexualmente liberto em que vivemos. De qualquer forma, ele induz um sofrimento que é bem real, mesmo que de origem psíquica e não física.

A boa notícia é que é uma perturbação tratável mesmo sem ser necessário recorrer a medicação. A terapêutica proposta? Uma boa de uma psicoterapia. Quanto ao sexo puro e duro, não sendo a solução, decerto que poderá ser um contributo simpático para o processo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Mamilo Americano

No início de cada ano a nação mais potente do mundo pára para ver a bola. Em Fevereiro, no outro lado do Atlântico, ocorre o Super Bowl, equivalente da final da Taça dos Campeões, elevada à décima potência e condimentada com folclore Americano q.b. Em 2004, mais do que os resultados do jogo, o motivo de conversa nas semanas seguintes foi o que aconteceu no intervalo. Durante o tradicional espectáculo na pausa do jogo, num acto que tudo indica foi planeado, Justin Tinberlake puxou a camisola de Janet Jackson, expondo o seu negro seio.


Se tal tivesse ocorrido em países como Inglaterra ou França, o caso teria direito a muitas anedotas e alimentado a imprensa cor-de-rosa durante umas semanas. Nos EUA, o incidente que ficou conhecido como Nipplegate, deu direito a vários processos de tribunal e a qualquer coisa como meio milhão de queixas de espectadores, culminando com um pedido de desculpas da cantora que continuou a defender ter-se tudo tratado de um acidente.


Episódios como este não são novos nos EUA, não ao nível do significado real do evento (insignificante ou tão só patético), mas na reacção desproporcionada que provocam. A caça às bruxas de 1692 em Massachussetts, bem como a caça aos comunistas da década de 1950 são pequenos grandes exemplos de como banais circunstâncias se podem tornar em complexos fenómenos sociais e mediáticos na sociedade Americana. E tal ocorre, normalmente, à custa da racionalidade e também das liberdades mais fundamentais dos cidadãos. No caso Nipplegate, a liberdade de expressão foi, uma vez mais, coarctada. Numa de muitas consequências, desde 2004 que a emissão dos Óscares e dos Grammys é feita com um atraso de 10 minutos em relação ao tempo real. Assim, se alguém disser ou fizer algo que não deve, haverá sempre a possibilidade de aplicar a poderosa tesoura da censura.


Stanley Cohen, um sociólogo Sul-africano, desenvolveu o conceito de Pânico Moral, muito apropriado a esse tipo de situações. De acordo com o autor, pânicos morais ocorrem quando muitas pessoas reagem de forma desproporcionada a um evento, ou indivíduo(s), considerados ameaçadores à ordem social. Assim como o mamilo da Janet Jackson.


O mais bizarro, e motivo para desconfiar da natureza acidental do evento, é que o mamilo da mana Jackson nem sequer foi exposto, uma vez que estava estrategicamente coberto por uma peça de metal. Mas os pânicos morais são assim, cegos em relação aos mamilos escondidos, e prontos a encontrar bodes expiatórios que divergem a atenção de questões sociais de fundo. Se alguma coisa podemos aprender com os EUA, neste caso por oposição, é a tentar ter uma atitude mais reflexiva e menos histriónica a situações como o caso Casa Pia. É que todos ficamos a perder quando isso acontece.

 
 
Publicado na revista Pública de 26/10/2008