sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Romances com um final feliz



Não existem muitas editoras que vendam 130 milhões de livros por ano. Ou que publiquem 120 títulos por mês em 107 países diferentes. Ou ainda que tenham tido os seus livros um total de 230 semanas na lista de best-sellers do New York Times. No entanto, tal editora existe, tem a sua sede em Toronto, no Canadá, e chama-se Harlequin. Essa mesmo: a dos romances cor-de-rosa que, pelos vistos, vendem muito bem!

Em 2009 a Harlequin completou 60 anos de idade. São 60 anos a enternecer corações femininos, uma vez que todos os livros que publica são concebidos, desde a capa até ao conteúdo, com o público feminino em mente. Cinco biliões de livros vendidos depois, parece que alguma coisa a editora canadiana está a fazer bem!

Mas porque compram as mulheres literatura romântica como quem compra pasta de dentes? Que necessidade é essa de escrita a apelar à lágrima no canto do olho? Parece que assim se confirmam os estereótipos que defendem que as mulheres são emotivas ao contrário dos homens que serão um poço de racionalidade. Que uns usam mais um lado do cérebro e outras mais a outra metade. Que uns são de Marte e outras de Vénus. E coisas assim por aí fora.

Queiramos ou não, as raparigas continuam a ser educadas para dar mais atenção a relações e os homens mais à estratégia. As mulheres incentivadas a exprimir as suas emoções e os homens a escondê-las. Os homens a serem uma espécie de predadores sexuais e as mulheres a dissimularem o seu desejo. Com tamanha formatação, a começar nos primórdios do berço, não haverá a Harlequin de vender ao desbarato?

Outra questão que se coloca é qual o efeito que esta exposição ao melodrama literário terá sobre as mulheres. É que já dizia La Rochefoucauld, moralista Francês do século XVII, que muitas pessoas não se teriam apaixonado se nunca tivessem ouvido falar da paixão. Pois hoje em dia, há quem defenda que muito do que hoje associamos ao amor e ao romantismo foi-nos vendido pelos media e pela literatura. Como resultado, passaremos parte da vida em busca de algo que não é mais do que o argumento de um romance cor-de-rosa medíocre.

Às custas da Harlequin muitas mulheres andarão a suspirar pelo seu príncipe encantado que chegará montado num cavalo branco, quando na verdade o sentimento arrebatador, essa paixão sem igual que esperam sentir nunca poderá chegar aos calcanhares do que qualquer heroína da Harlequin sentirá.

Mas mesmo se as relações reais não podem aspirar ao technicolor da ficção, enquanto continuar a existir capacidade de sonhar, os sonhos continuarão a vender, e bem. E, pálidos ou não, os romances da vida real continuarão a aspirar a um final feliz.

Artigo originalmente publicado na revista Pública em 28/06/2009

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Tintin fora do armário



Alguma vez suspeitou que o Noddy e o Orelhas eram mais do que apenas “bons amigos”? Que o homoerotismo descarado do filme “Batman e Robin” (1997) não deixava de ter um quê de verdade? Ou que a amizade entre Asterix e Obelix era um pouco suspeita? Pois bem, a mais recente personagem de banda desenhada a ser arrancada do armário poderá deixar alguns de boca aberta, mas francamente, apenas os mais distraídos.

Matthew Parris, jornalista britânico, juntou dois e dois e afirmou que, sim senhor, Tintin era gay. Num artigo publicado no The Times no início de 2009 ("Of course Tintin is Gay. Ask Snowy", 7/01/2009), ainda antes do boom de popularidade proporcionado pelo filme de Spielberg e Jackson, Parris faz uma lista exaustiva dos sinais que apontam nesse sentido, por exemplo, o estilo impecável de Tintin; a sua androginia; e um Fox Terrier chamado Milou.

Mas para lá de estereótipos, Parris refere ainda que apenas 2% das personagens que se cruzam com o repórter ao longo das suas aventuras são mulheres, com completa ausência de moçoilas atraentes que pudessem ser bons partidos para o rapaz. Pelo contrário, Tintin desenvolve uma suspeita amizade com Chang, um rapaz chinês pelo qual chora num dos raros momentos em que o personagem deixa cair lágrimas por alguém.

Mesmo fugindo a outros clichés, como o fato de a sua única amiga ser Castafiore, uma diva de ópera (!), a prova gritante para tal argumento surgirá n’O Caranguejo das Tenazes de Ouro (1941). Nessa história, Tintin muda-se de armas, bagagens e Milou para a mansão do capitão Haddock que, por essas alturas é um desequilibrado alcoólico inveterado. Porém, ao longo do tempo e após tal convívio salutar com o rapaz, alguns anos mais novo, Haddock vai acalmando.

Decerto haverá quem discorde veementemente de tal tese. Apesar do autor de Tintin, Hergé, ser Belga, foi em França que surgiu uma tempestade de contestações à teoria de Parris. A reacção gaulesa é tanto mais inesperada quanto os Franceses são, regra geral, bastante liberais. Porém, a homofobia espreita por todos os cantos e, como este episódio demonstra, continua bem viva. Afinal, porque deverá ser problemática a sexualidade do rapaz? Ou de qualquer outro rapaz ou rapariga? Pois.

Infelizmente, actos homossexuais continuam a levar homens e mulheres a ser condenados à morte ou à prisão em muitos países. Indivíduos gays são vítimas de discriminação e violência todos os dias e continuamos a ouvir altas e baixas individualidades da Igreja dizer que a homossexualidade não é normal.

Nesse cenário, é de louvar J. K. Rowling, que voluntariamente revelou que Dumbledore, personagem de Harry Potter, é gay. Evitou assim que outros tivessem que interpretar uma evidência não óbvia, mas nem por isso menos verdadeira, à semelhança da sexualidade de Tintin.

E, entretanto, entre todas estas discussões, ninguém ainda fez a pergunta que parece ser a essencial: Mas afinal Tintin era louro ou ruivo?

Versão editada e atualizada da versão originalmente publicada na revista Pública a 08/03/2009

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Para que serve um clítoris



O clítoris é dos órgãos mais inúteis que existem. A sua única função conhecida é a de proporcionar prazer à mulher. Nisso continua a ser um dos grandes mistérios da natureza. É que se presume que todas as partes do corpo, por mais ínfimas que sejam, têm sempre uma função qualquer a cumprir. São, por assim dizer, úteis. O teimoso do clítoris desafia essa lógica da batata. Existe, estoicamente, apesar de não ter nenhuma função de relevo.

Esta, claro, é a parte em que as mulheres saltam, indignadas. “Mas então ter assim orgasmos fabulosos não é coisa de relevo? Então e nós?” Pois. Sem dúvida que esse é um argumento pertinente.

Porém, reportemo-nos para já, à lógica científica clássica e positivista. O clítoris até pode ser conveniente para fazer as mulheres vibrar de prazer na cama, ou lá onde elas muito bem entenderem. No entanto, se o fim último do sexo é o de favorecer a reprodução, pelo menos do ponto de vista da continuidade da espécie, o clítoris está muito mal colocado. E em vários sentidos. É que, ainda que não seja essencial, para engravidar convém que haja penetração e, por sua vez, a penetração não é das melhores formas de estimular o clítoris. Trezentos e cinquenta mil aparelhos movidos a pilhas que se vendem em sex shops, já para não mencionar o clássico dedinho, fazem muito melhor trabalho. O coito consegue dar conta do recado apenas por aproximação, sendo que é frequente que nem funcione como deve de ser. Em contrapartida, é a melhor táctica para fazer bebés.

Sabe-se que, do ponto de vista do desenvolvimento fetal, o clítoris é o equivalente anatómico do pénis. No entanto, aquele botãozinho fantástico tem duas vezes mais terminações nervosas do que o órgão masculino, apesar de ser bem mais pequeno. E, enquanto que nos rapazinhos o respetivo apêndice se desenvolve de forma exibicionista e descarada para fora do corpo, nas rapariguinhas ele mete-se para dentro até manter de fora apenas a cabecita. 

À semelhança do pénis, também ele fica erecto quando a mulher está excitada. E, tal como o seu congénere masculino, pode ter diferentes tamanhos, sendo que em alguns casos mal se vê mesmo quando em erecção e noutros é tão protuberante que quase parece um pénis miniatura.

Sabendo-se tudo isto sobre o clítoris, mantém-se, porém, o mistério quanto à sua função. Darwin, se se tivesse debruçado sobre o assunto, teria passado várias noites em branco tentando perceber como é que a evolução da espécie humana terá dado origem a tal aberração. As mulheres não se chateiam nada com isso. Mantêm o privilégio enigmático de um órgão feito a pensar apenas nas suas necessidades. Afinal, se a evolução decidiu ser generosa para com elas, quem somos nós para a questionar.

Publicado na revista Pública a 29/11/2009

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Papás e outros objectos (in)úteis




Hoje em dia não há espaço para dúvidas. Se por um qualquer motivo questionar se o seu pai é realmente seu pai, daqueles cujo sangue corre nas profundezas das suas veias, basta ir à Internet e procurar uma empresa que faça um teste dos que permitem determinar se fulano X é pai de sicrano Y. Precisa apenas de apanhar um pelito de barba ou um qualquer lenço de papel com uma cuspidela do seu pai, adicionar um caracol do seu próprio e angustiado cabelo, e enviá-lo para o apartado respectivo. Na volta do correio receberá o esperado e, quem sabe, inesperado resultado. 

Assim hoje em dia se esclarecem dúvidas sobre se os lindos olhos do menino ou da menina são mesmo os do pai, aquele que se espera que mude a fralda malcheirosa e, mais tarde, pague a escola do rebento.

Mas nem sempre as coisas foram assim. Há muitos e longínquos milénios, e ainda hoje em algumas remotas sociedades humanas, se considera ser uma mera coincidência o facto de ter ocorrido uma relação sexual nove meses antes de nascer uma rechoncha criança. Donde não se reconhecia o papel dos homens na fabricação de infantes. Eles, os homens, eram uns tipos que andavam por ali e com quem de vez em quando se davam umas voltas, mas pouco mais do que isso.

Nessas sociedades de antanho, utópicas para as feministas, distópicas para os machistas, as mulheres eram seres quase sobrenaturais que continham em si a capacidade mágica de fazer crescer e multiplicar crianças. Por isso pensa-se que estatuetas de mulheres ligeiramente obesas e com um mau penteado, como é o caso da Vénus de Willendorf, tenham sido amuletos e símbolos de fertilidade numa antiguidade bastante antiga.

Passaram uns bons anitos e tudo mudou. Eventualmente algum rapaz mais arguto acabou por perceber que afinal a linda menina até tinha os seus olhos e que, se calhar, a bebedeira nove meses antes teve como consequência algo mais do que apenas uma ressaca. Além disso, com o aparecimento do conceito de propriedade, os homens terão começado a preocupar-se com a sua descendência, heranças e coisas afins, e as mulheres a dizer mal da sua vida.

Hoje em dia, longe estamos dos tempos da rapariga de Willendorf. Gastam-se milhares em consultas de fertilidade e os babosos papás têm direito a licenças de paternidade. Dá-se excessiva importância aos tais laços de sangue, quando na verdade, a paternidade é um papel e uma função social, que nada tem a ver com genes. Que o digam milhares de pais e filhos adoptivos para os quais não ser carne da carne é um pormenor de somenos importância. É no carinho de noites passadas em branco a dizer que afinal foi só um pesadelo e no amor de limpar litros de ranhoca, entre outras coisas menos viscosas, que se encontra a verdadeira natureza do que é ser pai.

Se a biologia dá imenso jeito para a reprodução da espécie, há que não esquecer que é nas relações sociais e na cultura que se encontra o cerne do que nos define como humanos. E é aí também que nos tornamos pais e mães.

Versão editada de uma crónica originalmente publicada na revista Pública em 01/11/2009

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

15,82 centímetros de fascínio


Desde que descobrem ter um interessante penduricalho entre as pernas, até ao dia em que deixam esta Terra, que não termina o fascínio dos homens pelo seu pirilau. De facto, o nível de atenção que o homem médio dedica ao respectivo pénis não deixa de ser, no mínimo, suspeito.

Sem dúvida que o dito é muito útil para a libertação de fluidos diversos. Pode proporcionar umas quantas sensações agradáveis quando manipulado de forma adequada. Mas, na mesma medida, também pode ser causa de desassossego quando não funciona tão bem quanto descrito no panfleto ou quando algum bicharoco não convidado insiste em fazer dele a sua nova e fantástica moradia.

Tal fixação peniana extravasa, até em rapazes e homens heterossexuais, o interesse pelo próprio para abranger o de outros. Manifesta-se essa curiosidade em particular em balneários e casas de banho públicas, em que havendo oportunidade, não deixa de se espreitar o órgão alheio para o comparar ao próprio.

Esse interesse, que por vezes raia o mórbido, leva a actos disparatados e a circunstâncias bizarras. Bom exemplo é o do pénis de Napoleão Bonaparte, que teve direito a vida e fama para lá da morte do seu proprietário. Reza a história, contestada por alguns, que aquando da autópsia do estadista Francês, num momento de distracção das autoridades presentes, aproveitou o médico que realizava o exame para subtrair ao falecido estadista o seu membro. Conservado em formol, o napoleónico pénis terá sido oferecido, herdado, vendido e leiloado. Viajou repetidas vezes de um lado para outro do Atlântico, até ter sido adquirido por um famoso urologista Norte-Americano. Terminou, de todos os lugares possíveis, na Nova Jérsia, triste sorte, onde jaz numa cave bafienta. O cadavérico Napoleão decerto sentirá a sua falta.

Por sua vez, e de acordo com a filha, Raspoutine teria um impressionante órgão de 33cm. Como sabia ela desse pormenor, é coisa que é melhor não perguntar. Mas ao contrário do que se possa pensar, é possível que ele não estivesse satisfeito com o seu tamanho. É que outro desporto popular entre os homens é o de se preocuparem com a dimensão do seu órgão, habitualmente por acharem-no incapaz de assustar um caracol. Porém, de acordo com uma investigação realizada pelo urologista Nuno Monteiro Pereira, um por cento dos homens Portugueses, cerca de 50 mil marmanjos, possui um megapénis (19,5cm ou mais, em erecção), e muitos gostariam de não o ter. Sendo que a média nacional, de acordo com a mesma investigação, é de 15,82cm, muitos acharão as preocupações dos tais 50 mil disparatadas.

Costuma dizer-se que tamanho não é documento. Mas vá-se lá convencer os homens disso. Para muitos, quanto maior melhor, mesmo ao contrário das melhores evidências. Porque, de facto, não é o instrumento que faz a arte, mas o artista.

Publicado na Revista Pública de 20/09/2009

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Os missionários e os bons selvagens


Existe o mito, tão antigo quanto falso, de que foram os missionários cristãos que inventaram a posição sexual conhecida pelo seu nome. Aquela em que a mulher se encontra, passiva como uma donzela, deitada de barriga para cima, enquanto que o homem lá vai fazendo o seu trabalho vigorosamente entretido sobre ela.

Como diversos etnógrafos e historiadores tiveram a possibilidade de documentar, tal posição é mais antiga que a cristandade e encontra-se em várias culturas independentemente da influência dos missionários. Foram encontrados vasos datados de três mil anos a.C. decorados com imagens de homens “missionando” as suas parceiras.

Entre os antigos Gregos, Romanos, Peruanos e Japoneses, essa era a posição preferida por dessa forma se reforçar a superioridade moral dos homens sobre as mulheres. Os Chineses, apesar de criativos nas artes do sexo, apreciavam essa disposição dos corpos durante o ato por acreditarem que os homens nasciam de cara virada para baixo e as mulheres de cara virada para cima. Por seu lado, entre algumas tribos em Kerala, na Índia, ainda hoje se acredita que apenas nessa posição pode ser concebido um guerreiro.

Porém, verdade é também que os primeiros missionários, ao se depararem com a diversidade copulatória dos povos de África e do Pacífico, decidiram por ordem no paraíso, usando uma boa dose de retórica e inspiração divina. Afinal, se Adão veio ao mundo antes de Eva, nunca deveria a mulher estar numa posição superior ao homem, como acontecia em terras de bons selvagens.

Apesar de popular durante séculos sem fim, a posição barriga sobre barriga caiu em desgraça em tempos modernos. Vivemos numa era em que o sexo foi kamasutrizado. O contorcionismo sexual é publicitado tanto em revistas femininas como em masculinas e espera-se que a vida íntima do comum dos mortais seja tão variada como o enredo de um filme pornográfico. A posição missionária foi acusada de opressiva do prazer feminino e passou a demissionária.

Mas será assim tão má a pobre coitada? Apesar da publicidade negativa, a posição do missionário não deixa de ter as suas vantagens. É útil, por exemplo, em dias de preguiça, em particular da mulher, quando se pretende o máximo resultado com o mínimo esforço. Em casais apaixonados, permite contacto olho no olho até à náusea. E supostamente, mas muito supostamente, é uma boa posição para se conseguir engravidar, se esse for um dos propósitos do encontro.

Limitar o sexo a apenas uma posição pode transformar a vida sexual de um casal numa obrigação enfadonha. Ser um bom selvagem na cama, mais do que um direito, deverá ser um dever. Assim, a posição do missionário nada tem de mal, desde que utilizada com conta, peso e medida. E como alguém disse, ela é um pouco como o queijo fresco. Precisa que se lhe adicionem condimentos para ganhar sabor. Já descobriu o seu?


Publicado na revista Pública em 03/05/2009

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A filosofia da alcova, do chicote e das algemas



O ano é 1671. Escondido num canto sombrio da noite londrina, um vulto vestido de negro espera uma vítima. Uma mulher solitária aproxima-se, incauta. A criatura salta do seu canto, agarra a mulher, levanta-lhe os saiotes e açoita-a violentamente. O ataque prolonga-se até que a desgraçada começa a gritar, chamando atenções e levando o agressor a fugir noite fora. Durante vários meses, e até ser apanhado pelas autoridades, Whipping Tom, como foi chamado pela imprensa da época, provoca o temor na capital Inglesa, repetindo os seus ataques e modus operandi.

Apesar de anteceder em um século a filosofia (e a praxis) do infame Marquês, e em dois a inauguração dos termos sadismo e masoquismo (Krafft-Ebing, 1886), certo é que se adivinha na actividade de Whipping Tom uma satisfação pela dor, humilhação e, provavelmente, pelo susto provocado às suas vítimas. O que prova que as modernices sexuais de ordem alfabética (BDSM, ou Bondage, Dominância, Sadismo e Masoquismo), afinal não são tão modernas assim.

Séculos depois dos ataques do açoitador endiabrado de Londres, o sadomasoquismo encontra-se vivo e de boa saúde, até em Portugal! A prová-lo está a realização de mais um Gathering Party em Lisboa há algumas semanas, um evento que reúne pessoas interessadas em actividades sadomasoquistas e que já vai na sua 11ª edição. Nestes encontros, praticantes acérrimos, bem como curiosos iniciáticos, escravos como mestres, dominadores como submissos, podem socializar, chicotear, mumificar, torturar, enfim, dar vazão às suas fantasias sexuais sem medo de repreensão.

Quem participa nestas festas provavelmente não é o comum cidadão, mas uma minoria com interesses peculiares e especializados. O S&M tem uma característica curiosa: muitas vezes não envolve os genitais, não deixando de ser, por isso, uma actividade sexual. Por esse motivo, é uma área paradigmática da sexualidade, em que se demonstra que, para ter sexo, não são necessários órgãos sexuais. Excepto de vez em quando, para espetar umas agulhas.

Apesar de ainda ser olhado de esguelha pela maioria conservadora da população (mesmo aquela que utiliza ocasionalmente umas algemas ou mesmo, em dias de festa, um chicote), o BDSM não é nem patológico nem criminoso, desde que praticado entre adultos de sua livre vontade. Falta é, a muita gente, a capacidade de sair da sua perspectiva pessoal sobre o que deve ser o sexo, ou de se abstrair do folclore que por vezes o sadomasoquismo pode ter, para aceitá-lo como (mais) uma alternativa à posição do missionário.

Dizia um panfleto dos finais do século XVII, a propósito de Whipping Tom, “Some says he does it in pure love”. Uns bons açoites podem, afinal, ser um acto de amor, pelo menos quando dados e recebidos de plena vontade.

Texto originalmente publicado na revista Pública em 21/06/2008

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ser anal



As línguas podem realmente ser muito traiçoeiras. Quando pela primeira vez nos Estados Unidos alguém me disse, casualmente num encontro social, que era muito anal, a minha reacção foi empalidecer, engolir em seco e perguntar “Excuse me?”. O contexto e as circunstâncias não eram de forma nenhuma sexuais, pelo que aquilo que soava a uma revelação íntima pareceu-me, no mínimo, desadequada.

Para os nativos da língua Inglesa, referencias à analidade desse tipo nada têm de sexual. Referem-se tão só a um tipo de personalidade, caracterizado por uma vincada necessidade de organização, pelo apego às regras estabelecidas e por um gosto pela limpeza.

Anal é quem cumpre todas as regras de trânsito e recrimina todos os que não o fazem. São aqueles cujas secretárias no trabalho estão sempre impecável e irritantemente organizadas. São os que nunca vão de férias sem ter uma relação das despesas e listas exaustivas dos locais a não perder.

É interessante olhar para as origens de tão peculiar expressão. Na conhecida teoria do desenvolvimento infantil de Freud, a segunda etapa pela qual todas as crianças passarão é a chamada fase anal. Nela, os pequenotes desenvolvem um interesse particular pelas suas funções excretoras traseiras. Divertem-se a fazer sprints com os seus bacios. Levam os pais quase à loucura ao decidirem dar vazão às suas necessidades fisiológicas nos momentos e locais mais improváveis. Entretêm-se com requintadas produções artísticas nas paredes da sala utilizando materiais frescos de produção própria.

As fases descritas por Freud têm, de facto, uma dimensão sexual. Através da maturação fisiológica, a criança vai experimentando prazer com diferentes áreas do corpo. Porém, espera-se que, no final do processo e na vida adulta, os prazeres orais e anais sejam secundados pelos proporcionados por pénis e vaginas, no chamado princípio da genitalidade. 

Não pretendo aqui discutir as limitações das ideias de Freud, abençoado seja pela pequena revolução cultural que trouxe ao Ocidente. Interessa saber que, de acordo com o mestre Vienense, aqueles que por algum motivo fiquem psicologicamente encravados, passe a expressão, na fase anal, desenvolverão consequentemente características de personalidade como as acima descritas. As anais.

Hoje em dia, apesar de elucidado sobre o que querem os anglófonos dizer quando referem que esta ou aquela pessoa é anal, ainda tenho que parar dois segundos para pensar, evitando momentos de embaraço. E cada vez mais considero que, com conta, peso e medida, a analidade até que não é coisa má. Na verdade, creio que está na altura dos Portugueses perderem a vergonha e de abraçarem a analidade. De a aceitarem como um facto natural e desejável da vida. Todos seremos muito mais felizes quando isso acontecer.

 Publicado na Revista Pública de 14/12/2008

sábado, 2 de abril de 2011

Desplantes mamários


Enquanto que nos países ocidentais certas mulheres gastam milhares em cirurgias para espevitar as suas mamocas, em algumas tribos da Papua Nova Guiné outras orgulham-se dos seus seios que apontam para o chão. Para estas, os peitos rechonchos de que tanto gostam mulheres e homens ocidentais são um sinal de imaturidade e motivo de desdém. Afinal, é habitualmente depois das primeiras amamentações que os seios iniciam o seu dramático percurso descendente.

De acordo com Desmond Morris, existe a ideia de que a função principal dos seios será a láctea, o que tornaria o interesse dos homens por eles infantil. Porém, para o famoso especialista Britânico, apenas um terço dos tecidos mamários cumpre essa função. Logo o formato hemisférico dos seios humanos (sic) cumprirá outra importante função: a da diferenciação sexual. Por arrastamento, conclui, a ocultação dos seios nas mulheres equivale ao corte da barba dos homens.

Esquece-se Morris que, enquanto que para os homens fazer ou não a barba pela manhã é uma opção corriqueira, uma mulher que decida ir de peito ao léu para a rua depressa chamará muita atenção, da boa e da má. 

De facto, no Ocidente, às custas de tanto esconder essa parte do corpo, transformou-se um banal pedaço da anatomia feminina num símbolo erótico. E, por arrastamento, vários impérios comerciais se aconchegaram em seu redor. Além da já mencionada cirurgia plástica, exemplos óbvios são o de revistas como a Playboy, ou a indústria da lingerie. É que, já que o soutien, assim como a cuequinha, é o que nos separa do estado de macaco nu, a roupa interior tornou-se num dos mais valorizados acessórios da moda contemporânea. Que o diga Calvin Klein.

Assim, apesar de queimados e requeimados nos anos 60, real e simbolicamente, por feministas cansadas da opressão, da delas e da das suas mamas, os soutiens não perderam a sua popularidade. Mas se essas mulheres consideravam tal peça de vestuário um símbolo da repressão masculina, então pobres das suas avós que tinham que utilizar os muito mais opressivos espartilhos. Tão opressivos que não as deixavam respirar.

Entretanto, para a felicidade mamária de muitas mulheres, o peito feminino foi-se libertando, acabando por explodir em topless descomplexados nas praias dos anos 80, assim como nas passerelles dos anos 90.

Mas, ainda assim, a mama mantém o seu potencial erótico. Dirão psicanalistas de ideias fixas que tal se deve à relação íntima que todos estabelecemos com o fofo e fecundo órgão em muito tenras idades. É difícil determinar se isso explica a obsessão peitoral de muita gente. Certo é que elas andam por aí, redondas ou pontiagudas, espevitadas ou descaídas, de fabrico ou fabricadas e, de uma forma ou de outra, é impossível ignorá-las.

Publicado na revista Pública a 09/08/2009

sexta-feira, 18 de março de 2011

A casa de banho da discórdia




Há uns anos atrás decorreu uma acaloradas discussão na Universidade de Nova Iorque (NYU) entre alunos, professores e administração. O motivo: as casas de banho da universidade. Tudo começou quando um grupo de alunos fez a proposta de alterar a tradicional separação das instalações sanitárias em função do género, com o objectivo de criar lavabos unissexo.


Devo referir que este tipo de iniciativas não é novidade em Nova Iorque. A mítica discoteca Limelite onde decorre uma das sequências do filme “Instinto Fatal” de Paul Verhoeven (1992), por exemplo, tem casas de banho únicas para homens e mulheres. Muitos outros locais de diversão e instituições de ensino um pouco por toda a cidade têm esta peculiaridade, ainda rara em Portugal. Porém, um dos motivos pelo qual surgiu esta questão deve-se ao facto de existir na NYU uma considerável população LGBT (Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), com algum peso, ainda que relativo, da sua dimensão “T”.


Transgender são indivíduos que não se encaixam nas tradicionais categorias de género, ou seja, que, por algum motivo não se consideram ou não podem ser considerados, de modo absoluto, como “homens” ou “mulheres”. Podem ser transsexuais pré ou pós-operatório, cross-dressers (pessoas que gostam de se vestir como alguém do outro sexo, independentemente da sua orientação sexual), interssexuais (pessoas que nascem com características genitais ambíguas), de entre muitas outras possibilidades. Para estas pessoas, o simples acto de ir a uma casa de banho pública pode não ser um acto simples e implicar uma escolha tendo em consideração a sua identidade sexual (se se consideram homens ou mulheres, independentemente de terem um corpo masculino ou feminino) mas também as reacções das pessoas aí presentes. Por exemplo, um homem cross-dresser que decida ir a uns lavabos masculinos poderá suscitar reacções menos positivas dos homens que lá se encontrem, mas poderá também não ser acolhido de braços abertos num quarto de banho feminino.


A polémica em torno desta questão na NYU relaciona-se exactamente com esta realidade. Há quem, de um modo bastante aceso, conteste o pedido dos referidos alunos em ter WC unissexo por considerar que a presença de um homem (na perspectiva de muitos definido como uma pessoa com pénis) ofensiva e até abusiva numa casa de banho feminina. Dizia uma aluna, defensora desta posição: “Deixem-me fazer chichi em paz!”. É claro que, logo de seguida, era acusada de modo igualmente aceso de homofobia e de transfobia, levando a retaliação por parte daquela, e aí por diante...


Depois de alguma discussão, em reuniões e em fóruns da Internet, acabou por se chegar à conclusão que afinal já existiam, um pouco por todo o campus, casas de banho indivivuais e unissexo, que afinal eram a prova de que existia por defeito, senão uma política da instituição em relação ao assunto, ao menos uma solução de compromisso que permitia amainar ânimos.


Aquilo que, à primeira vista, poderá parecer uma discussão um tanto ou quanto sem sentido em torno das preocupações de meia dúzia de pessoas, revela, na verdade, um contexto social e político sensível às questões do género e da discriminação em torno de factores de ordem sexual, que está longe ainda de ocorrer em Portugal, ao menos com estes contornos. Podemos agora ter uma legislação bastante progressista no que respeita à mudança do género do ponto de vista oficial, mas ainda muito há por fazer. Por exemplo, nas casas de banho.


Artigo original, escrito em 2005 e adaptado em 2011.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Orgasmos mal comportados





Nos idos anos de 1960, um casal de investigadores norte-americanos, de seu nome Virgínia Johnson e William Masters, decidiu lançar uma arrojada e original investigação. Queriam eles perceber exactamente que alterações fisiológicas ocorriam durante uma relação sexual. E como bons cientistas que eram, acharam que a única forma de o saberem seria através da observação e medição sistemáticas, em laboratório, do banal acto da cópula.


Puseram anúncios a pedir voluntários e esperaram. Contra as expectativas dos mais cépticos, várias centenas de pessoas fizeram fila para participar. Lá foram ao laboratório dos cientistas, despiram-se e foram ligados a uma parafrenália impressionante de maquinarias esquisitas. Baixaram-se as luzes e deixou-se que a magia da ciência acontecesse.


Dos registos de 10.000 orgasmos de 382 mulheres e 312 homens que Masters e Johnson realizaram, duas coisas pareceram evidentes. A primeira é que muitas mulheres eram capazes do fantástico dom da multiplicação dos orgasmos, ou seja, conseguiam saltitar levemente de clímax em clímax sem precisar de dormir uma sesta para recuperar. Os homens, pelo seu lado, não sendo capazes de tal proeza, comprovaram ter algo que lhes dificulta fingir um orgasmo, a famosa da ejaculação. A emissão dos mililitros da praxe foi registada como um dos sinais evidentes de que o homem já atingiu o seu auge.


Entre vários outros pormenores maiores ou menores descobertos pela parelha de investigadores, esses dois pareciam ser bastante certos. E durante muitos e muitos anos, ambos foram assumidos como verdades no âmbito da Sexologia. Mas, afinal, a dupla maravilha estava mesmo enganada. Como os mestres tântricos já sabiam há muito tempo, os homens, desde que bem treinados, conseguem obter a dádiva dos múltiplos orgasmos e alguns sortudos têm-nos mesmo sem terem que se esforçar.


Por seu lado, como Beverly Whipple, outra investigadora norte-americana, veio a descobrir nos anos 80, as mulheres que se queixavam de fazer “xixi” durante o sexo afinal não sofriam de um estranho caso de incontinência urinária. Quando analisado tal xixi, verificou tratar-se de um liquido em tudo semelhante ao esperma, excepto que sem espermatozóides. Afinal, as mulheres, ou pelo menos algumas delas, também ejaculam, tal como os homens.


Não é novidade que homens e mulheres são muito mais parecidos do que pensávamos. Há muito que a embriologia nos tinham ensinado que, ao nível do desenvolvimento do feto, o clítoris é equivalente ao pénis, os ovários aos testículos, os grandes lábios ao escroto, e aí por diante. Os estranhos mas significativos casos de orgasmos mal comportados à luz da tradição sexológica mostram-nos assim que até no auge do prazer, também as barreiras do género se dissolvem.

Publicado na revista Pública a 19/04/2009

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Período Monstrual

“Fico como um monstro, absolutamente insuportável, para mim própria e para os outros”. É desta forma que Anabela, uma secretária de 28 anos, descreve o seu estado de espírito nos dias que antecedem o aparecimento da sua menstruação.

A Anabela sofre de tensão pré-menstrual, também conhecida por TPM, caracterizada por um conjunto de sintomas físicos e psicológicos, na sua maioria desagradáveis, que surgem habitualmente nos dias imediatamente anteriores à menstruação e que podem perdurar ainda nos primeiros dias desta. Estes sintomas podem ser muito diversos. Na verdade, podem ser quase qualquer coisa! A investigação científica sobre este assunto já identificou cerca de 150 tipos de sintomas diferentes, dos quais os mais comuns são dores de barriga, fadiga, depressão, irritabilidade e baixa auto-estima, além dos ataques de choro, das insónias, da tensão mamária, das dificuldades de concentração e das alterações do apetite, entre muitos outros.

Porém, será que a Anabela sofre mesmo de tensão pré-menstrual? Não, de acordo com algumas feministas e também de acordo com certos especialistas. Para as primeiras, a TPM apenas serve para as mulheres se desculparem de problemas que não têm nada a ver com a menstruação ou, pior, para evitarem fazer o que não têm vontade de fazer, como seja trabalhar, cozinhar, aturar as crianças ou o marido, a título de exemplo.

Certamente que se pode colocar a questão: mas será que as feministas não sofrem de TPM? Acontece que a sua posição é mais política do que médica ou pessoal: defender que as mulheres têm uma particularidade que as incapacita durante certos períodos de tempo, por pequenos que sejam, é assumir que de facto são inferiores aos homens, o que constitui um excelente argumento para a discriminação que caracteriza a sociedade machista em que vivemos.

Do ponto de vista dos especialistas, a questão coloca-se porque a TPM não ocorre em todas as mulheres (apenas em 19% de acordo com um recente estudo norte-americano) e de, como já foi mencionado, manifesta-se através de sintomas muito diferentes, sendo quase impossível defini-la com precisão. Se é algo de assim tão vago e indeterminado, de acordo com alguns especialistas, dificilmente pode ser considerada como uma perturbação digna de tal designação.

Apesar de todas estas contestações, a TPM não deixa de afligir muitas mulheres que volta e meia estão... bem, como monstros, nas palavras da Anabela. As feministas e os tais especialistas bem podem acusá-las de estarem a atirar com as culpas das suas maleitas para cima da menstruação, mas o certo é que algumas de facto não se sentem da melhor forma naquela altura do mês.

É que, quer se queira, quer não, este acaba por ser mais um bom exemplo, a par do aborto, de como o corpo feminino é terreno privilegiado para batalhas e contestações que têm tanto de político quanto de ideológico e, em qualquer dos casos, muito pouco de benéfico para as próprias mulheres.

Publicado na Revista Activa em 2005