sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Guerras pornográficas e casamentos improváveis



Durante as décadas de 1970 e 80 travaram-se as chamadas guerras da pornografia nos EUA. Ao contrário do que mentes mais fantasiosas poderão pensar, não se trataram de batalhas em que as partes belicosas utilizaram dildos ou implantes de silicone como armas de arremesso, nem de conflitos em que o sexo foi a táctica privilegiada para esgotar o inimigo.


Na verdade essas guerras surgiram na sequência da criação da Commission on Obscenity and Pornography que, em 1970, publicou um relatório que determinou não existir evidência científica em como a exposição a materiais sexuais explícitos poderia causar delinquência. Até então, acreditava-se que a reacção de qualquer homem que visse um filme pornográfico seria, naturalmente, a de violar e esquadrinhar a primeira beldade indefesa que lhe aparecesse pela frente. Depois do dito relatório, os norte-americanos adultos passaram a poder visionar toda a pornografia que quisessem no aconchego do seu lar sem incorrer em pena de prisão.


Tal libertação libertina provocou várias reacções, na sua maioria adversas. Dois grupos em particular tornaram-se ferozes no combate à indústria do sexo: cristãos e feministas. Do lado da religião, criticou-se a imagem descomplexada, pois claro, que a pornografia transmite do sexo. A tal que vai contra o famoso ideal cristão que dita: não fornicarás desenfreadamente com o primeiro canalizador que te bater à porta. 

As feministas, por sua vez, eram contra a transformação da mulher em objecto sexual, típica de tais filmes de profunda complexidade intelectual. A improvável convergência desses dois grupos fez com que por vezes tenham unido forças para combater o mafarrico da pornografia.


Outro exemplo de uniões forjadas no quinto dos infernos ou no sétimo dos céus, dependendo da perspectiva, é retratada no documentário City of Borders (de Yun Suh, 2009). Em 2006, organizações de defesa dos direitos de minorias sexuais Israelitas decidiram organizar a marcha World Pride em Jerusalém. Uma das diversas consequências dessa iniciativa foi a de unir Judeus Ortodoxos e Árabes contra a realização do evento.


Partindo destes dois exemplos, é impossível não pensar quão tolerante é a intolerância. Pessoas que noutras circunstâncias nunca se sentariam à mesma mesa para tentar ultrapassar as suas divergências, são capazes de se unir no ódio contra o que ambas consideram contrário aos seus ideais. E em ambos estes casos, é da negação de diferentes aspectos da sexualidade que surgem tais uniões imprevistas. O sexo é sem dúvida um estranho catalizador (e, por vezes, canalizador) com a capacidade de juntar na mesma cama os mais improváveis parceiros.

Publicado na revista Pública em Outubro de 2009

domingo, 13 de outubro de 2013

Controladores implacáveis




Mais cedo ou mais tarde, as máquinas acabariam por se virar contra nós. Do "Exterminador Implacável" ao "Matrix", passando pelo "Eu, Robot", há já muito tempo que a ficção científica nos alertava para essa possibilidade. Nós, distraídos, sempre achamos que esse cenário estaria ainda muito longe. Talvez nunca esperássemos que o monstro por detrás da máquina fossemos nós próprios e não um mega-computador com consciência própria.

Basta uma breve pesquisa na Internet para encontrar variadissimas ferramentas onde supostamente será possível verificar com uma probabilidade de erro de apenas alguns metros, onde se encontra a nossa cara-metade. Como cada vez mais pessoas hoje em dia carregam no bolso um aparelhinho localizável desde que se tenha a tecnologia certa muita gente estará, mesmo sem disso ter consciência, a ser vigiada pelo seu controlador e patologicamente ciumento mais-que-tudo. 

Independentemente de tais sítios funcionarem ou não, facto é que a tecnologia para fazer esse tipo de vigilância existe e não se limita aos satélites. Funções como recibos de SMS e depósito directo de mensagens, para não falar de câmaras instaladas em computadores e telemóveis, são novas armas ao dispor do Big Brother em cada um de nós. Quem disse que quem ama confia? As evidências parecem demonstrar que quem ama desconfia. E muito.

Um amigo de Melbourne, na Austrália, confessava-me recentemente estar farto do controlo excessivo da sua namorada que vive em Praga, na República Checa. Ela liga-lhe constantemente para saber onde ele está, com quem está e o que está a fazer. Têm tido grandes discussões através de Messenger porque ela suspeita que nos momentos em que ele não esta online certamente estará com outra(s). Se a distancia brutal que os separa (cerca de 16.000 km) poderá espicaçar as inseguranças da pequena, não deixa de ser curioso que a mesma tecnologia que permite a manutenção do improvável romance entre os dois, é a mesma que está a tornar a sua relação insustentável.

Pois é. O futuro previsto pelos génios da fantasia e da ficção está aí a bater-nos à porta. O Big Brother está a observar-nos e tem um rosto muito familiar. Detectives privados e o pouco nobre hábito de vasculhar as papeladas e os bolsos da companheira ou companheiro apenas para descobrir aquilo que se preferia não saber, são velhas realidades. A Internet e todas as novas tecnologias de comunicação apenas fornecem formas mais sofisticadas para fazer exactamente o mesmo de forma mais eficaz. 

É que o ciberespaço à semelhança do nosso planeta encontra-se povoado por pessoas, não por robots. Por esse motivo, o que lá se encontra são muitas vezes extensões virtuais do monstro que vive na casa ao lado ou que dorme na nossa cama.

Publicado na revista Pública em Setembro de 2008

domingo, 28 de julho de 2013

Andar por aí



Todos nós conhecemos pessoas que se queixam de não arranjar emprego, de não ter sorte, de não encontrar o amor da sua vida, de nunca lhes acontecer nada de especial ou que consideram a sua vida sentimental um aborrecimento de morte. Estas e outras queixas frequentemente encontram-se todas concentradas nas mesmas pessoas. Porém, também não é pouco frequente encontrar quem, apesar de uma vida profissional intensa e satisfatória e da posse de recursos económicos  para fazer o que bem entendem em casa, nos tempos livres ou nas férias, do ponto de vista amoroso tudo é uma desgraça.



É certo que nem todos conseguem ter o à-vontade para conhecer novas pessoas e por vezes tem-se mesmo azar com aquelas que se vão conhecendo. O mundo está cheio de pessoas indisponíveis, desequilibradas, inconstantes ou pura e simplesmente chatas. Mas também se encontram em abundância as que são interessantes, inteligentes, desimpedidas e cheias de talentos no quarto e na cozinha. Apenas há que encontrá-las, apesar de nem sempre o destino permitir que ocorram esses encontros.



Mas se isso é verdade, também o é que as tais pessoas que se queixam de nunca encontrar a paixão da sua vida muitas vezes não se esforçam minimamente para a encontrar. Ficam fechadas em casa a curtir as suas mágoas, não saem com os amigos nem vão para locais onde há gente e onde os tais  afortunados encontros podem ocorrer. Desse modo, certamente que será muito mais difícil conhecer alguém especial e apaixonar-se. O que significa que, mesmo para encontrar paixão, é necessário esforço e estar nos sítios certos, que podem ser quaisquer uns. Em suma, é necessário andar por aí. Quando menos se espera, no ginásio, na praia, na discoteca, no curso de computadores ou de Arraiolos, no centro comercial ou no comboio, tudo pode acontecer.



Mas nem sempre apenas isso basta. O princípio básico de qualquer vendedor aqui também é verdade: quanto melhor a técnica, melhor a venda. E se o produto que se quer vender é o próprio, então há que utilizar todos os recursos disponíveis. É certo que a aparência não é tudo e que, mais do que ser-se bonito por fora, é importante ser-se bonito por dentro. Mas, dito isto, também há que reconhecer que a primeira impressão é muito importante e pode determinar a ocorrência de uma chispa das que pode fazer fogo. 

Afirmar-se que se é feio também não é desculpa. Certo é que o dom da beleza não é concedido pela magia de uma fada madrinha, mas há sempre formas de contornar o que uma natureza madrasta nos concedeu com uns pozinhos de perlimpimpim. Os italianos são disso um ótimo exemplo e andar nas ruas de qualquer cidade italiana é sempre um banho de vista, mesmo quando os observados não são particularmente bonitos.



O resto é parte sorte, parte saber-fazer e parte de qualquer outra coisa que lamento informar, ninguém sabe muito bem o que é. Não existem receitas milagrosas para que as pessoas se conheçam e para que a paixão surja. Mas, quando surge, aí sim acontece magia digna dos contos de fada e a de alguns romances eróticos também.

Originalmente publicado na revista Activa em 2005

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Coito, interrompido




Malhando para dentro, peneirando para fora. Muito apropriada a forma como há quatro mil anos um escritor Judeu descreveu o popular mas básico método contraceptivo, hoje mais conhecido pelo nome de coito interrompido. Apesar de coisa assim já antiga, pensa-se que essa inventiva estratégia tenha sido responsável pela redução da natalidade na Europa nos séculos XVIII e XIX. Nessa altura uma mudança de mentalidades permitiu que se começasse a ponderar ser possível ao Homem controlar o seu corpo de formas até então impensáveis. 

Actualmente o coito interrompido é altamente popular na pornografia, em que nenhuma cena é considerada concluída sem que o viril protagonista se desencaixe da sua heroína (ou heroi) para terminar a sua prazenteira tarefa pela sua própria mão. E assim em algumas paragens ganha esse método os ilustrativos nomes de “banho de emersão” e “lambuzadela”.

Como método contraceptivo é um flop. A sua taxa de sucesso ronda os 80%, muito abaixo da pílula ou do preservativo, respectivamente próximos dos 99 e dos 97%. O que nunca impediu que muitos casais o preferissem por motivos religiosos, pessoais ou de falta de melhor método disponível. Afinal o coitus interruptus fornece a alternativa fácil e barata na ausência de opções de maior eficácia. 

Como afirma o muito respeitável Manual de Planeamento Familiar para Médicos (APF, 1988), esse método tem a vantagem de não requerer supervisão profissional, não é esquecido em casa quando o casal vai de férias, não é tributado e não causa alterações menstruais ou ganho de peso. Além disso, não pode ser ocasionalmente encontrado e degustado pelas crianças, como acontece com os preservativos, tantas vezes confundidos com pastilhas elásticas.

Hoje em dia o coito interrompido continua a ser a primeira opção contraceptiva de cerca de 3% das mulheres em idade fértil em todo o mundo. A Albânia, por algum motivo obscuro, é de longe o país onde mais se utiliza esse método (67,1% das mulheres em idade fértil). É um tanto da ordem do incompreensível a preferência das Albanesas. É que além de falível, é um método que requer uma boa dose de auto-controlo por parte do homem. E, convenhamos, muitos não conseguem interromper uma sessão de acrobacias eróticas só para “deitar fora o melhor”, outro nome afectuoso pelo qual é conhecido tal método. Como se não bastasse, o desmancha-prazeres não previne doenças. 

Apesar dos inconvenientes e da forte concorrência, o coito interrompido continua a ser um sucesso de vendas sem o ser. Oferece a solução low-tech e low-cost para momentos em que a necessidade se sobrepõe à racionalidade, mesmo pondo em causa os princípios básicos da prevenção. Mas desde o tempo de Onan que as pessoas tomam decisões irracionais a propósito do sexo. E isso parece que tão depressa não mudará. 

Publicado originalmente na revista Pública em Setembro de 2009

domingo, 14 de outubro de 2012

Nzinga, Rainha Angolana



Não muita gente ouviu falar de Nzinga Mbande. Porém, no seu tempo, muitas dores de cabeça esta rainha Angolana causou neste reino à beira mar plantado. Nzinga reinou na região de Ndongo no século XVII, numa época em que os Portugueses se entretinham com as lides pouco louváveis da escravatura, assim criando um dos primeiros mercados globais da história da humanidade.

Nzinga sucedeu ao irmão, morto em circunstâncias incertas, e durante os seus cerca de 40 anos de reinado, revelou-se uma soberba negociadora e governante, aliando-se a Portugueses, Holandeses e reinos vizinhos em função dos seus interesses e dos do seu povo. Conseguiu considerável controlo territorial enquanto reinou, controlo esse rapidamente perdido após a sua morte. Mulher inteligente, converteu-se ao catolicismo como forma de fortalecer um tratado de termos iguais estabelecido com Portugal. Foi então baptizada de Dona Ana de Sousa.

Apresentamos aqui Nzinga, primeiro porque nunca é demais valorizar figuras femininas poderosas da nossa História, que infelizmente não abundam. Depois porque, de acordo com algumas más-línguas, Nzinga terá levado uma vida de devassidão sexual sem paralelo.

Senão vejamos, Dona Ana alegadamente teria um vastíssimo harém constituído por homens que ela com regularidade mandava lutar até à morte. O prémio do vencedor seria passar uma noite com sua majestade, mas não por favoritismo, porque muitas vezes o pobre coitado era morto logo pela manhã. Quem sabe por a sua prestação não ter sido satisfatória. Além disso, como que para manter contagem de quantos já lá iam, guardava os genitais dos amantes, tendo assim constituído uma colecção sem par. Diz-se ainda que mandava vestir os seus criados homens com roupas de mulher e que, uma vez, ao ir para uma batalha, instruiu os seus guerreiros para que a chamassem de “meu rei”.

Com tais referências, não é de estranhar que Nzinga tenha sido mencionada pelo Marquês de Sade na sua obra “A Filosofia da Alcova”. Resta saber até que ponto essas alegações são verídicas. É que era rotineiro na época exagerar aquilo que à luz dos costumes Europeus era considerado bárbaro no comportamento de povos escravizados. Era uma forma de desumanizá-los e assim justificar a sua utilização como mercadoria, prática contra a qual Nzinga lutou ferozmente. Assim, era fácil para as mentalidades delicadas do burgo horrorizar-se com a vida íntima dos africanos, esquecendo-se que outras práticas não menos selvagens ocorriam por sua iniciativa, como é bom exemplo a própria da escravatura.

Independentemente do que Nzinga faria na intimidade do seu harém, o que ninguém lhe pode tirar é a coragem que teve em impor-se num mundo masculino e de lutar pelos seus súbditos. E é acima de tudo por isso que é importante recordá-la.

Publicado na revista Pública a 15/11/09