quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Papás e outros objectos (in)úteis




Hoje em dia não há espaço para dúvidas. Se por um qualquer motivo questionar se o seu pai é realmente seu pai, daqueles cujo sangue corre nas profundezas das suas veias, basta ir à Internet e procurar uma empresa que faça um teste dos que permitem determinar se fulano X é pai de sicrano Y. Precisa apenas de apanhar um pelito de barba ou um qualquer lenço de papel com uma cuspidela do seu pai, adicionar um caracol do seu próprio e angustiado cabelo, e enviá-lo para o apartado respectivo. Na volta do correio receberá o esperado e, quem sabe, inesperado resultado. 

Assim hoje em dia se esclarecem dúvidas sobre se os lindos olhos do menino ou da menina são mesmo os do pai, aquele que se espera que mude a fralda malcheirosa e, mais tarde, pague a escola do rebento.

Mas nem sempre as coisas foram assim. Há muitos e longínquos milénios, e ainda hoje em algumas remotas sociedades humanas, se considera ser uma mera coincidência o facto de ter ocorrido uma relação sexual nove meses antes de nascer uma rechoncha criança. Donde não se reconhecia o papel dos homens na fabricação de infantes. Eles, os homens, eram uns tipos que andavam por ali e com quem de vez em quando se davam umas voltas, mas pouco mais do que isso.

Nessas sociedades de antanho, utópicas para as feministas, distópicas para os machistas, as mulheres eram seres quase sobrenaturais que continham em si a capacidade mágica de fazer crescer e multiplicar crianças. Por isso pensa-se que estatuetas de mulheres ligeiramente obesas e com um mau penteado, como é o caso da Vénus de Willendorf, tenham sido amuletos e símbolos de fertilidade numa antiguidade bastante antiga.

Passaram uns bons anitos e tudo mudou. Eventualmente algum rapaz mais arguto acabou por perceber que afinal a linda menina até tinha os seus olhos e que, se calhar, a bebedeira nove meses antes teve como consequência algo mais do que apenas uma ressaca. Além disso, com o aparecimento do conceito de propriedade, os homens terão começado a preocupar-se com a sua descendência, heranças e coisas afins, e as mulheres a dizer mal da sua vida.

Hoje em dia, longe estamos dos tempos da rapariga de Willendorf. Gastam-se milhares em consultas de fertilidade e os babosos papás têm direito a licenças de paternidade. Dá-se excessiva importância aos tais laços de sangue, quando na verdade, a paternidade é um papel e uma função social, que nada tem a ver com genes. Que o digam milhares de pais e filhos adoptivos para os quais não ser carne da carne é um pormenor de somenos importância. É no carinho de noites passadas em branco a dizer que afinal foi só um pesadelo e no amor de limpar litros de ranhoca, entre outras coisas menos viscosas, que se encontra a verdadeira natureza do que é ser pai.

Se a biologia dá imenso jeito para a reprodução da espécie, há que não esquecer que é nas relações sociais e na cultura que se encontra o cerne do que nos define como humanos. E é aí também que nos tornamos pais e mães.

Versão editada de uma crónica originalmente publicada na revista Pública em 01/11/2009

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