domingo, 24 de janeiro de 2010

O caderninho negro



Existem objectos assim. De forma mais ou menos obscura e sem que se dê por isso ganham fama no submundo das nossas vidas sexuais. Tornam-se quase místicos, envoltos numa aura de fascínio e de mistério que os tornam tão mais atraentes. Esse é o caso do caderninho negro. O tal em que se guardam os contactos das pessoas com quem, no passado ou no presente, se manteve algum tipo de envolvimento íntimo, envolvimento esse que poderá oscilar entre a paixão platónica e o mais escabroso e depravado relacionamento sexual. Mais das vezes, o último caso é o que se aplica.


É o caderninho que se guarda no fundo da gaveta, mesmo quando se está já numa relação séria e monogâmica, porque nunca se sabe. É o caderninho ao qual se acede quando as hormonas, por assim dizer, decidem dar um ar da sua graça, sem que ninguém lhes tivesse pedido que se pronunciassem. É o tal que se guarda religiosamente, mesmo quando já nenhuns dos contactos que contém se encontram actualizados. O caderno que acaba por ganhar valor sentimental, inclusive quando já não tem utilidade prática nenhuma, por ser um testemunho silencioso de glórias sexuais passadas ou porque sugere outras futuras.


O quase proverbial caderninho é um bom paradigma do que Anthony Giddens, sociólogo britânico, descreve sobre a transformação da intimidade nas sociedades modernas. É que, ao contrário do que acontecia no passado, em que as relações entre as pessoas eram determinadas pelas normas sociais e pelo que a família dizia e mandava sobre o assunto, hoje em dia são as pessoas elas próprias que querem, podem e mandam. Assim vão alegremente – ou por vezes nem por isso – levando avante a sua vida da forma que melhor consideram satisfatória, em particular no que respeita à sua experiência amorosa e sexual.


Giddens descreve, em jeito de exemplo, como cada vez mais as pessoas desenvolvem uniões e facto em vez de se casarem, uma vez que já não é o casamento o fim último da relação. Fala sobre como os adolescentes optam por ter relações sexuais com base no amor que sentem pelos namorados, e já não (tanto) em função do que os outros possam pensar. De como, quando o amor acaba, se vai em busca de um novo para preencher o lugar vago.


A vida íntima, com o tal caderno a servir de directório, é por excelência o terreno em que vamos construindo quem somos, em jeito de manta de retalhos, mesmo numa época em que os cadernos são cada vez mais virtuais, embutidos na memória dos telemóveis, em programas de correio electrónico ou nos “Preferidos” de sítios na Internet. À medida que vamos experimentando novas formas de nos relacionarmos com os outros, na cama, no sofá ou no café, também vamos percebendo melhor quem somos, descobrindo-nos à medida que descobrimos prazer com o alheio.


Publicado na revista Pública a 22/03/2009

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