quarta-feira, 15 de junho de 2011

A filosofia da alcova, do chicote e das algemas



O ano é 1671. Escondido num canto sombrio da noite londrina, um vulto vestido de negro espera uma vítima. Uma mulher solitária aproxima-se, incauta. A criatura salta do seu canto, agarra a mulher, levanta-lhe os saiotes e açoita-a violentamente. O ataque prolonga-se até que a desgraçada começa a gritar, chamando atenções e levando o agressor a fugir noite fora. Durante vários meses, e até ser apanhado pelas autoridades, Whipping Tom, como foi chamado pela imprensa da época, provoca o temor na capital Inglesa, repetindo os seus ataques e modus operandi.

Apesar de anteceder em um século a filosofia (e a praxis) do infame Marquês, e em dois a inauguração dos termos sadismo e masoquismo (Krafft-Ebing, 1886), certo é que se adivinha na actividade de Whipping Tom uma satisfação pela dor, humilhação e, provavelmente, pelo susto provocado às suas vítimas. O que prova que as modernices sexuais de ordem alfabética (BDSM, ou Bondage, Dominância, Sadismo e Masoquismo), afinal não são tão modernas assim.

Séculos depois dos ataques do açoitador endiabrado de Londres, o sadomasoquismo encontra-se vivo e de boa saúde, até em Portugal! A prová-lo está a realização de mais um Gathering Party em Lisboa há algumas semanas, um evento que reúne pessoas interessadas em actividades sadomasoquistas e que já vai na sua 11ª edição. Nestes encontros, praticantes acérrimos, bem como curiosos iniciáticos, escravos como mestres, dominadores como submissos, podem socializar, chicotear, mumificar, torturar, enfim, dar vazão às suas fantasias sexuais sem medo de repreensão.

Quem participa nestas festas provavelmente não é o comum cidadão, mas uma minoria com interesses peculiares e especializados. O S&M tem uma característica curiosa: muitas vezes não envolve os genitais, não deixando de ser, por isso, uma actividade sexual. Por esse motivo, é uma área paradigmática da sexualidade, em que se demonstra que, para ter sexo, não são necessários órgãos sexuais. Excepto de vez em quando, para espetar umas agulhas.

Apesar de ainda ser olhado de esguelha pela maioria conservadora da população (mesmo aquela que utiliza ocasionalmente umas algemas ou mesmo, em dias de festa, um chicote), o BDSM não é nem patológico nem criminoso, desde que praticado entre adultos de sua livre vontade. Falta é, a muita gente, a capacidade de sair da sua perspectiva pessoal sobre o que deve ser o sexo, ou de se abstrair do folclore que por vezes o sadomasoquismo pode ter, para aceitá-lo como (mais) uma alternativa à posição do missionário.

Dizia um panfleto dos finais do século XVII, a propósito de Whipping Tom, “Some says he does it in pure love”. Uns bons açoites podem, afinal, ser um acto de amor, pelo menos quando dados e recebidos de plena vontade.

Texto originalmente publicado na revista Pública em 21/06/2008

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